A máscara

Colunistas Geral

Gilberto tinha uma arte que desenvolveu faz tempo: a arte de convencer os outros a seguir, comprar e fechar negócios de grande monta. O que fez ele crescer muito na sua profissão. Na sua carreira, ele estava como se considerasse no topo. Sua vida era regrada, autoconfiante, decidido, cuidava de sua imagem, tanto a externa, aparecia impecável, não itia qualquer tipo de roupa, então era dos pés à cabeça, até seu perfume tinha uma marca específica. Ele negava, desconversava, puxava outro assunto, quando alguém queria esmiuçar suas origens. Gilberto sabia bem, nem sua esposa tinha o a isso, conheceu-o num lugar da moda, onde todos iam às sextas para relaxar e esquecer as complicações da vida. O papo dele era leve, alegre, parecia ter soluções para todas as dúvidas e inseguranças que a Rosa, mesmo sem querer, acabava confessando. Depois de três meses saindo com certa frequência e falando o dia todo pelas redes sociais, se viram morando juntos e construindo o que a partir daí seus amigos mais próximos diziam: uma vida perfeita, mas aquilo era uma máscara.
Ele tinha uma grande negociação naquela semana, aquelas reuniões era praxe de sua vida, sabia como chegar, o que tinha de conversar, como abordar e convencer seus associados e possíveis parceiros. Então, raramente deixava de fechar e ter grandes lucros com o que fazia sem dificuldade. Mas algo aconteceu que mudou seu destino e teve que aprender coisas da vida que achou que jamais aria novamente, porque o ado que escondia da maioria das pessoas de suas relações jamais entenderia como teve suas origens.
Naquele jantar, uma entrada, o prato principal, grupo animadíssimo, três gestores, as cifras faladas, os planejamentos, a forma de como teriam lucro no tempo de investimento, os riscos calculados e expostos por planilhas, consultados nas telas. Bebida vasta, riso solto, quando chega à sobremesa, servida a capricho, nem prestara atenção em quem estava com a bandeja. Aí, quando servida no parceiro ao lado, um anel naquela mão já enrugada o fez olhar para o rosto daquela senhora, de uniforme, olhar profundo, semblante sereno e discreto, que fez Gilberto gelar e paralisar sua fala: era sua mãe.
Sim, Gilberto tinha uma mãe que não mantinha relações familiares há mais de vinte anos, foi criado na casa de uma tia, diziam que ela havia largado ele para sua avó, porque o tivera e seu pai nunca quis reconhecer o filho. Infeliz com a situação, não criou o filho após os três anos e isso fez com que não tivesse contato, a não ser pelas fotos que sua avó tinha e duas visitas que fizera a ele, nos seus sete anos e depois quando já tinha dezesseis anos. Nunca o chamando de filho e sem qualquer contato de afeto.
Para sua surpresa, ela não o reconheceu, seguiu seu serviço e trouxe novamente uma repetição da sobremesa para um colega parceiro que gostou do doce. Mas isso o desconcertou, que nem conseguia se concentrar direito para fechar o negócio, sentindo pelos demais. Pediu licença, deixou seus contatos, que logo retornaria e foi para casa, com um semblante triste de alguém que acabou de tocar numa ferida grande que o tempo nem cicatrizou ou curou de fato.
Sua esposa o recebeu alegre, mas falante, dizendo os problemas que tivera em seu trabalho, no conserto que teriam que fazer no carro e comemorando que o pintor finalmente iria fazer o serviço de pintura da casa onde moravam. Mas, parou e logo notou que Gilberto estava perdido e triste. Ele silenciou, disse que hoje não tinha condições de tocar no assunto, foi dormir sem jantar e acordou mais tarde que o costume de sábado. Depois do café, sentou-se com a esposa e disse: ‘Tenho que entrar num assunto que sempre pedi tempo para te dizer. Tu sabes que fui criado pela minha avó e depois pela minha tia, só que ontem vi minha mãe.’ Faz vinte anos que não a via e ela nem me reconheceu. A mulher o abraçou, disse que estava com ele para tudo e o que ele faria sobre isso? Queria se aproximar dela?
Ele respondeu que não sabia o que iria fazer, tinha que antes ir fazer uma visita crucial, vou fazer uma viagem à tardinha, estou em casa, era para ela confiar nele. E assim fez: a estrada de chão, a casa simples, bate na porta, abre sorriso largo, carinho na receptividade: – Meu filho, quanto tempo, veio ver a tua mãe! E ele se derrete todo: Sim, preciso de um conselho!
Era sua tia Mara, que o criou quando sua avó faleceu e explicou tudo que aconteceu naquela noite e se de fato procuraria sua mãe. A tia/mãe, sempre muito sábia, lhe respondeu: – Filho, a ferida está aí, tu seguiste tua vida, estás casado, foste bem criado.
Mas, se te der paz falar mais uma vez com tua mãe e tentar ter uma relação de filho com ela, é opção tua. Segue o teu coração e fica tranquilo. Aquilo fazia todo sentido para Gilberto.
Voltou mais leve para casa, contou à esposa onde foi e no outro dia tomou a decisão de ir àquele restaurante enfrentar algo que era maior que qualquer negociação que já tinha feito: tirar a máscara e falar com sua mãe de verdade. As pernas tremiam, a voz embargada, falou com o gerente, perguntou da senhora da sobremesa, ele disse que ela logo chegaria, seria o turno da noite que trabalhava e foi esperar. Nisso vem ela, séria, sem reconhecê-lo, e solicitou que conversasse algo pessoal, falou: – Sou seu filho, aquele que abandonou. E aí ela reconheceu, mudou o jeito, quis abraçá-lo, mas viu que existia muita dor e teria ali uma conversa longa. Pediu então que, outro dia, no endereço onde morava, se reencontrassem. E assim ele fez, sua vida paralisou desde isso, a ferida era grande, não tinha mais como fugir de respostas do porquê ela o abandonou. Conversa difícil, assuntos pesados, choro, indignação, mas também algo maior entre os dois aconteceu: perdão. No fim de tudo, sua mãe só disse algo: – Sei o que te fiz! Mas perdoa, filho, era jovem e imatura. Sofri muito porque teu pai não me deu apoio. E ele aí se desmontou, mais uma vez aquela máscara impecável, feliz, bem-sucedida, tomou conta de um homem rendido na sua verdade de vida, que precisava ser curada.
Anos se aram, a relação dos dois não era tão profunda, igual à mãe/tia que o criou, mas muitas coisas melhoraram na vida de Gilberto. Algo se desprendeu e a leveza veio junto pelas amarras do ado. Mas isso só quando tirou a máscara que ele carregava!

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